Arte - Tema Eunice - "Ainda estou aqui".
Lutos e relutâncias

O mundialmente aclamado filme Ainda estou aqui tem inúmeros vieses para análise: social, política, histórica, filosófica, dentre outras.

Abordarei aspectos dramáticos, no sentido conceitual do trágico.

A análise a seguir aprecia alguns temas relevantes, como a apresentação da casa da família Paiva como um microcosmos invadido.

O simbólico da opressão e do silenciamento ambientado pelo diretor se evidenciam na construção da atmosfera interna da casa, sob a ótica da abordagem do não dito e do não visto, quando ocorre a dos espaços privados da família Paiva.

A personagem Eunice

A dimensão dramática  da personagem de Eunice Paiva como heroína trágica, magistralmente interpretada por Fernanda Torres, será abordada pela via do luto.

A protagonista é claramente uma personagem dramática.

A força da violência do “destino” a privou de seu marido:

uma perda agravada pela ausência materialização do corpo.

Rubens Paiva

O ex-deputado trabalhista e engenheiro Rubens Paiva, cassado pela ditadura militar brasileira (1971), saiu de casa numa manhã ensolarada do verão carioca, a fim de “prestar esclarecimentos” para policiais militares sobre a guerrilha urbana (dita comunista) que à época ousava enfrentar o Regime.

O marido de Eunice Paiva  – e pai de Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo – nunca mais foi visto vivo.

O governo ditatorial não admitiu que ele havia sido preso, torturado e morto pelo Estado.

As provas

Após Rubens Paiva ser levado para prestar depoimento, a casa da família passou a ser vigiada e vasculhada.

O motivo alegado para tal ação seria a suspeita de possíveis ligações de Rubens Paiva com guerrilheiros, em especial, Lamarca.

As provas dessas acusações nunca foram apresentadas.

A casa e a violência

A presença da violência no evento da invasão da casa da família Paiva, pelos agentes da repressão, não foi truculenta.

No filme a vemos desvelada pela transformação da atmosfera de um cenário familiar, outrora solar, aberto, alegre e musical para a conversão em um cenário obscuro, fechado e tenso.

Cenas onde diálogos monossilábicos e olhares invasivos recaem sobre a família; onde tudo presente na intimidade da casa é vasculhado: cômodos, armários, gavetas e papéis.

A violência psicológica

Ao longo do período da invasão ao domicílio percebemos uma série de violências.

A entrada na casa, os momentos à mesa, os olhares lânguidos para as adolescentes ou as escutas aos telefonemas feitos (ou recebidos) pela família são exemplos de  demarcações dessa violência psicológica operada pelos agentes do estado repressivo; presentes microcosmos dessa família de classe média alta.

Da boa sorte para a má sorte

Neste sentido, a violência apresentada ganha contornos diferentes, porque nossos sentidos estão amortecidos para a representação da invasão do estado contra os mais pobres e marginalizados (tema comum em filmes e reportagens).

A mesma situação contra uma família da elite carioca é uma realidade que não estamos acostumados a sequer imaginar.

A posição sociocultural privilegiada da personagem Eunice e de sua família, adquire contornos dramáticos.

Ao longo do desencadear da trama, eles passam da situação de boa sorte para a de má sorte .

A cena da invasão

Escolhi uma cena para ilustrar  a violência institucionalizada como algo real e poderoso.

Na cena escolhida, os policiais invadem a casa da família e, imediatamente, fecham as cortinas para vasculharem a casa com maior discrição.

Essa cena é, também,  um Mise-en-scène  de como a vida feliz da família no Rio de Janeiro passou da luz à escuridão em, apenas, um ato.

O cerrar das cortinas deu ao cenário um ar sombrio e abafou as vozes da casa .

A heroína 

Como uma heroína, Eunice enfrenta o sistema em busca de provas de que seu marido foi morto pela Ditadura.

Arte – Tema Eunice – “Ainda estou aqui”.
Honrar a memória

Não, somente, pela questão legal que implica provar a viuvez para ter como, por exemplo, reaver contas bancárias, administrar imóveis, acessar recursos para honrar dívidas.

Eunice busca, incessantemente, essas provas para conseguir honrar a verdade e, principalmente, a memória de seu marido.

Ele não era um bandido, nem covarde que fugiu.
Rubens foi um preso político torturado e morto por sistema repressivo paranoico.

O direito aos rituais de despedida

A dimensão humana que o filme alcança nos evoca o mundo antigo, ao início da civilização humana, onde o ser humano percebeu a importância de honrar a memória de seus mortos por meio de rituais de despedida.

O adeus ao corpo físico como significante do respeito à memória do falecido;
como importante ato ritualístico para o processo de elaboração do luto.

Assim como Antígona

Esse tema da reivindicação do corpo, me evocou outra heroína, Antígona, a nobre grega que morre em nome do direito natural (divino) ao corpo do irmão Polinices, morto em batalha e deixado abandonado ao relento pelas ordens do perverso rei Creonte

E essa passa a ser também a saga da heroína Eunice Paiva:

  • a reivindicação da certidão de óbito do marido, morto pelo regime militar;
  • o reconhecimento da responsabilidade do estado pelo crime contra um de um pai de família.

O corpo

Em determinada cena do filme, o cãozinho da família é atropelado e morto.

  A protagonista, até então contida em suas emoções, desloca a indignação pela perda do cão para a manifestação de raiva contra os representantes do regime, que estavam de campana em frente à sua casa e nada fizeram quando o Pimpão foi atropelado.

Ela vociferou como se eles fossem cúmplices do “crime” velado.
Mas, no entanto, sem dizer diretamente que estava atribuindo-lhes a culpabilidade pela morte do marido.

O lugar do não dito

  Aliás, essa é outra rubrica constante na orientação do filme, o lugar do não dito ou não mostrado é ocupado pelas insinuações nos diálogos e pelas ausências das cenas fortes, inclusive, daquelas que sugerem tortura.

Essa é mais uma característica que confere uma dimensão trágica à trama, que configura as características típicas das tragédias gregas:as cenas de terror e piedade, não devem ser encenadas às vistas do público”.

A despedida de Pimpão

A mãe Eunice ordena que a empregada busque um cobertor, o manto fúnebre do animalzinho.

A família recolhe o pequeno corpo inerte e faz para ele uma sepultura no pátio da casa, onde todos choram ao redor dele.

A perda do cão Pimpão (sim, ele é nomeado) é, também ,o choro, até então contido, pela ausência e pelo medo da perda do Pai.
Cada luto tem seu tempo

Na ausência do corpo de Paiva, da materialidade da perda, cada membro da família parece ter vivenciado um evento ou ato simbólico que permitiu a elaboração e o reconhecimento da perda definitiva do pai a seu tempo.

Percebo que a mãe foi a primeira a expressar isso pela emblemática cena do assassinato do cão.

A casa vazia, por ocasião da mudança da família para São Paulo, sinalizou para as crianças que o pai não iria voltar…

Outra cena que sugere a consciência da perda e o início ao processo de luto, nos remete ao início do filme, quando a filha caçula perde o dente de leite e o pai, Rubens, promete enterrar o dente na praia.

Nesse pequeno e singelo gesto da cumplicidade entre pai e filha, está enunciada uma alegoria.

Muito mais do que um simples símbolo do dente de leite que restou da primeira infância: está a metáfora da perda da inocência, mas também, o significante da perda do pai como o guardião.

Mais tarde, frente ao envolvimento com a mudança da casa, a mãe encontra o dente na gaveta do escritório do pai já desaparecido (e morto) e o entrega à menina.

A filha pergunta: “como você sabia que ele estava aqui?
A mãe responde: “Era um segredo meu e de papai”…

A memória 

A perda ou a morte de um ente querido é das dores mais terríveis que um ser humano pode suportar.

Impossibilitar a despedida do corpo e/ou um espaço onde representar o simbólico do “repouso eterno” é delegar, ao Outro. um sofrimento sem fim.

Não é à toa que o crime para ocultação de cadáver é permanente e não prescreve até que o corpo seja encontrado. (1)  

O diretor Walter Salles optou por recursos sofisticados, como elipses de cenas (espaços ) e suspensão de discursos violentos, para narrar de forma elegante e sensível a nossa história.

Atualmente encontramos ecos daqueles tempos…

Eles estão presentes. por exemplo, nos discursos de ódio ou nos que relativizam a tortura, ou ainda, naqueles que banalizam a vida do Outro.

Os temas perseguição politica, tortura, violência do estado e importância da democracia não podem ser esquecidos.

A palavra Memória vem do grego Mnemosyne: uma deusa cuja função era memorialística.

O filme é um salto no tempo histórico para reavivar a nossa memória.

Não à toa que a personagem de Eunice Paiva, encenada por Fernanda Montenegro, surge envelhecida ao final do filme e acometida de um apagão, provocado pelo Alzheimer.

O olhar profundo e vazio da personagem trágica assistindo ao noticiário ecoa em nós.

A televisão recorda sua história política.
Essa lembrança traz o brilho e a vida, de volta, ao olhar da heroína.

Nada pode apagar a lembrança do amor pelo companheiro e pela vida.

A  AUTORA
Elizete
Elizete Lacerda é licenciada em Letras, revisora de textos, escritora. Algumas de suas áreas de interesse e atuação: cinema e análise literária (especialmente análise de canções).
Notas:
  1. Artigo 211 do Código PenalDecreto Lei 2848/40.
  2. Arte: autoria de Patrícia Augusto Carra com cenas do filme.
  3. Assista ao trailer oficial do filme em: Picture Sony – Brasil – You Tube .
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