Históricas
A SURPRESA
Desta vez, o fenômeno da janela dos tempos apresentou um novo componente: o espelho das águas. Foi através de um espelho d’água que nos olhamos. Parecia meu reflexo, mas era um rosto desconhecido que, um tanto difuso, se apresentava na superfície da lâmina formada pela água.
Creio que ela também estranhou, mas diferente de mim, não demonstrou espanto. Perguntou:
– É você? É você quem procura conversar com mulheres de outros tempos?
Sim, respondi sem acreditar que agora – além de cartas, documentos cartoriais, versos populares e outros possíveis vestígios de serem arguidos – eu estava falando com um espelho d’água, ou melhor, com uma imagem nele refletida. Ela sorriu.
De onde fala? Perguntei. E o reflexo respondeu:
– Falo de Quariterê.
Não era possível! Seria o famoso quilombo? O também conhecido como Quilombo do Piolho? Ela continuou: como é possível esta magia? Pedi para visitá-la. Ela franziu a testa e desapareceu.
Um dia depois, era domingo e ventava frio quando a janela dos tempos surgiu e, ao abrir, deixou a vista uma flor de aguapé. Era o sinal!
Ao sair do labirinto formado pela janela dos tempos, me encontrei às margens do rio, hoje, conhecido como Piolho, um afluente do rio Guaporé. Atônita, pensei estar sozinha… Quando ouvi:
– Venha! – era o início da tarde quando entramos no quilombo. – Vamos direto para minha casa, disse Luena.

O QUILOMBO DO QUARITERÊ
As casas do quilombo guardavam certa distância umas das outras e eram ligadas por pequenas trilhas. Havia, também, uma espécie de praça próxima à casa destinada às reuniões das lideranças quilombolas. Esta praça era protegida por grandes árvores, de modo que, estando fora da região do quilombo, não a percebíamos, ou melhor, não percebíamos nenhuma clareira na mata.
A casa de Luena era a primeira, localizada logo no começo do território do Quariterê.
TEREZA DE BENGUELA
Expliquei à Luena que não sabia quanto tempo poderia ficar. Ela entendia. Ela também já havia viajado através da janela dos tempos.
Fomos surpreendidas por uma mulher altiva, muito bonita, cabelos trançados e enfeitados com contas. Luena abaixou a cabeça e eu a acompanhei. Era ela! Eu não podia acreditar que estava diante dela: a Rainha Tereza.
– Estejam bem! Ao ouvir a saudação, Luena levantou a cabeça e, novamente, eu a acompanhei.
Sentamos-nos em uma esteira e a rainha em um banco de madeira.
Reproduzo a seguir parte da entrevista que a Rainha Tereza ou, como hoje é mais conhecida, TEREZA DE BENGUELA, concedeu a Histori-se.
Rainha: Sou conhecida no seu tempo?
Histori-se: Sim. É conhecida por “Rainha Tereza, Rainha Viúva, Rainha Negra do Pantanal, Tereza de Benguela, Tereza do Quariterê e, também, por Rainha do Quilombo do Quariterê”.
Rainha: Embora seja viúva, sou mais que a que era esposa do rei. Sou a rainha e governante deste quilombo.
Histori-se: Não se preocupe, rainha. Não se referem à senhora como a Rainha Viúva. É mais lembrada como Tereza de Benguela ou Rainha do Quilombo do Quariterê.
Rainha: Então o Quilombo do Quariterê terá paz e vida longa.
Histori-se: [não consegui dizer do destino do quilombo] Penso que a senhora acerta em se preocupar com o reforço da segurança.
Rainha: Entendo… Faz poucos meses que o rei, meu marido, morreu [1750]. Foi num combate com forças que ameaçam o quilombo. Até então, nossos cuidados estão mais concentrados na vigilância do quilombo, mas penso que devo reforçar os cuidados com a segurança. Então, quer contar sobre mim para o futuro? Pode fazer as perguntas.
Histori-se: Precisamos falar sobre as mulheres que nos antecederam. Mulheres cujas histórias podem nos fortalecer, nos representar. A primeira pergunta é se nasceu aqui, no quilombo.
Rainha: Não. Eu conheci a escravidão. [pausa]. Consegui fugir e chegar ao Quilombo. Por muito tempo, fui rainha junto ao rei. Agora, com sua morte, sou a rainha e a governante.
Histori-se: Sinto muito pela perda do rei. Como foi assumir o lugar de governante?
Rainha: Penso que natural. Sempre acompanhava o rei. E um quilombo não pode ficar nenhum tempo sem um comando. Estamos sempre em perigo. Como esposa, eu sinto o luto, como rainha, tenho responsabilidade com o quilombo.
Histori-se: É uma mulher de grande força.
Rainha: Estou muito preocupada com a segurança do quilombo. No futuro, dizem se o quilombo foi conquistado?
Histori-se: [De novo a interrogação sobre os destinos do quilombo. Eu não conseguia responder. Um pouco, porque não queria contar que o quilombo seria invadido e Tereza morreria em decorrência. Um pouco, porque não conseguia falar sobre, as palavras não saiam.] No futuro, há muito sobre o que não sabemos ou sobre o que achamos saber, mas que não sabemos. Posso dizer que seu governo será lembrado e que conseguirá liderar e cuidar da defesa do quilombo por muitos anos.
Rainha: Entendo… Nem tudo nos é permitido conhecer, mesmo quando conseguimos falar com os tempos que ainda não nasceram. [pausa]
Rainha: Continue a entrevista.
Histori-se: Toma as decisões, em relação ao quilombo, sozinha?
Rainha: Nunca. Uma boa governante deve escutar o seu povo, estar junto à comunidade e se aconselhar com as lideranças da comunidade. Aqui, criei um conselho que toda semana é reunido para falarmos sobre nossas necessidades e discutimos problemas e ideias. Após ouvir e expor minhas ideias: decido. Aí sim, o decidido é regra. Se necessário, posso fazer mais reuniões do que as previstas.
Histori-se: Quantas pessoas vivem no quilombo? Todas são ex-escravas?
Rainha: Nem todas vieram da escravidão. Há indígenas, pessoas nascidas no quilombo e, claro, aquelas que conseguiram fugir da escravidão. Hoje, há pouco mais de cem pessoas.
Histori-se: E a produção do quilombo? Como o quilombo sobrevive, como satisfaz suas necessidades de vestuário e alimentação?
Rainha: Praticamos a agricultura onde plantamos milho, algodão, inhame e outros produtos. Criamos algumas galinhas. Conseguimos produzir alimentos suficientes para nosso sustento e para trocar por produtos que precisamos. Dedicamos-nos à tecelagem, produzimos todo o tecido que precisamos e, também, para vender. Nossos tecidos são bem resistentes, feitos de algodão. E temos duas oficinas para o trabalho de nossos ferreiros.
Nesse instante, chega à casa uma senhora com cuias de uma espécie de mingau de milho, só que salgado e acompanhado de uma verdura que penso ser taioba. Muito gostoso. Durante o lanche, seguimos nossa entrevista.
Histori-se: Praticam a caça, a pesca e a coleta de frutos como complemento?
Rainha: Sim, praticamos estas atividades, mas sempre respeitando os tempos da natureza e, também, apenas aqui nos arredores. Precisamos ter muito cuidado. Portanto, não garantimos o nosso sustento com essas atividades.
Histori-se: Como é o sistema de trabalho?
Rainha: A ideia que organiza o trabalho é o mutirão. Assim, plantamos, colhemos, construímos casas, utensílios, ferramentas. O trabalho coletivo, as habilidades de cada um, as necessidades do quilombo são as bases para pensamos nossos trabalhos.
O ferreiro pode não participar da colheita, por exemplo, mas faz enxadas e outros utensílios para todos.
Histori-se: Comerciam com não quilombolas? Não há riscos?
Rainha: Sim e sim. Sim, fazemos trocas com brancos, em geral, brancos pobres, mas por vezes, também, com comerciantes e outros mais abonados. Recebemos produtos que necessitamos, mas também, por vezes, ouro e pedras preciosas que, também, usamos para comprar o que nos falta, como sal, açúcar, munição. Trocamos com aldeias indígenas aliadas. E não apenas aqui nos arredores. As coisas não são tão simples. Mas há muitos riscos. Tudo tem que ser muito planejado.
Histori-se: E os cuidados com a saúde dos quilombolas?
Rainha: Penso que viver em liberdade é nossa principal vitamina. Aqui não temos fome. O problema com a saúde decorrentes de doenças ou ferimentos nós tratamos com os elementos da natureza a partir dos conhecimentos de nossos antepassados e dos indígenas que vivem conosco.
O FIM DA ENTREVISTA
Luena: Preciso interromper. A janela dos tempos… Parece que irá se abrir.
Rainha: Vocês devem ir.
Histori-se: Muito obrigada pela entrevista.
Eu e Luena saímos do território do quilombo. Atravessamos o rio Guaporé em direção ao atual território da Bolívia. Tínhamos receio que a abertura da janela dos tempos produzisse algum ruído ou luminosidade que pudesse atrair inimigos do quilombo para as suas proximidades.
Enquanto esperávamos, Luena me contou que descobriu a janela dos tempos, por acaso, durante a fuga de um ataque ao quilombo. Quando pensava sobre o acontecido, nos encontramos no espelho das águas.
A janela se abriu. Tive que partir. Luena tem pouco menos idade do que eu. Tenho certeza que nos reencontraremos.
O Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra
A Lei de n° 12.987/2014 definiu o dia 25 de julho como o DIA NACIONAL DE TEREZA DE BENGUELA E DA MULHER NEGRA. A ideia para a instituição desta data foi o Dia da Mulher Afro-Latina-Americana e Caribenha que destaca a identidade e a história dessas mulheres.
O Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra lembra os desafios, as lutas e as resistências das mulheres negras brasileiras através da história de Tereza, rainha quilombola que viveu no século XVIII.
Tereza governou o Quilombo do Piolho ou Quilombo do Quariterê por 20 anos após a morte de seu marido. O Quilombo estava localizado no território do atual Estado do Mato Grosso (Brasil) na região do rio Guaporé.
Veja a seguir datas relacionadas à história do Quilombo Quariterê:
- Formação do quilombo: há dados referentes ao quilombo datados da década de 1730.
- Morte do marido de Tereza e início de seu reinado: 1750.
- Ataque ao quilombo e morte de Tereza: 1770.
- Reconstrução do quilombo.
- Novo ataque ao quilombo: 1777.
- Reconstrução do quilombo.
- Data registrada com ataque que extinguiu o quilombo: 1795.
Referência:
VOLPATO, Luiza R. Ricci. Quilombos em Mato Grosso: resistência negra em área de fronteira. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. A Liberdade por um fio – a história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Observação:
O texto é uma ficção, contudo as informações históricas correspondem à historiografia. O conteúdo histórico é fruto de pesquisa.