Diadorim
Alegria não precisa alvará faz parte da coletânea “Mulheres ao Sul do Brasil”
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ALEGRIA NÃO PRECISA DE ALVARÁ
Ela trazia ainda na retina as lembranças do animado desfile do Fora da área de cobertura.
Era o ano de 2006 e Valentina estava lá: alegre e barulhento, o grupo de foliões deixou o Bar do Aldo para percorrer as ruas da Cidade Baixa.
As marchinhas se sucediam, aquecidas por todas as vozes antigas que, outrora, cantaram as mesmas músicas:
Pastorinhas,
Ó abre alas,
A filha da Chiquita Bacana,
A turma do funil,
Suíte dos pescadores ...
E, claro, o Hino do Fora da Área, que anunciava:
Sem Prefeitura pra financiar
Não tem SMIC nem EPTC
Vamos cantar, vamos dançar
Nossa folia não precisa de alvará
Vamos cantar, vamos dançar
Hoje é folia até o dia clarear.
Alguns dançavam, outros caminhavam, muitos saudavam os passantes com a latinha de cerveja.
A galera da água mineral, por sua vez, erguia as garrafinhas que, vazias, transformavam-se em mais um ornamento das fantasias.
O cordão era um só.
Na comissão de frente, em amarelo, azul e vermelho, o estandarte anunciava o bloco de marchinhas.

Os músicos traziam uma bateria poderosa que guiava o heterogêneo grupo: colombinas, piratas, bailarinas; meninas e meninos com vestes coloridas; cantoras que sorriam e dançavam convidando a quem quisesse aquela oferenda de afetos.
A Cidade Baixa estava seduzida.
Caminhantes com seus cachorros aderiram aos foliões e, a cada parada da bateria, água para o amigo de quatro patas.
Um músico desceu do seu apartamento com um saxofone e juntou-se à bateria.
Das janelas, moradores do bairro acenavam e faziam coro:
Quem sabe, sabe
Conhece bem
Como é gostoso
Gostar de alguém
Quem não recorda uma marchinha?
Na quadra seguinte, o cordão aumentara.
Famílias inteiras abandonavam a lida costumeira e desciam à rua.
As crianças pequenas chegavam no colo da mãe ou do pai.
Nas paradas de ônibus, os usuários resolviam seguir aquela força contagiante.
Senhoras de cabelos brancos, jovens casais e homens curiosos abandonavam a espera do transporte.
Transeuntes que se dirigiam ao Zaffari, outros que iam até a farmácia, ou batiam papo com algum conhecido optavam por juntar-se ao cordão.
Passava pelas ruas da Cidade Baixa um legítimo samba popular
Allah-la-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô
Mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô
Atravessamos o deserto do Saara
O Sol estava quente e queimou a nossa cara
E os carros?
E o movimento do sábado no bairro repleto de boemia?
Bem, sempre tem a turma da organização…
Espontaneamente, alguns foliões – Valentina entre eles – foram guardas e professores: organizavam as colunas dos participantes do bloco, sinalizavam nas avenidas e cantavam quando não precisavam avisar:
– Cuidem com os carros! Façam uma passagem!
Festa de rua, a cidade a cantar sua inebriante alegria.
Tempo de marchinhas e de ancestralidades.
Folia de Carnaval a reunir gerações, a congregar artistas e anônimos festeiros.
Tempo de sancionar a liberdade e o riso.
Às 22 horas, pontualmente, a folia terminou.
Amigos seguiram para um bar, para tomar uma cerveja juntos, famílias risonhas voltaram a seus afazeres.
Algumas senhoras sentaram no restaurante para beber e descansar; e, na troca de impressões, mantiveram acesas as emoções daquele evento.
Conhecidos do momento sorriram, entre extasiados e envergonhados, comentaram “Que legal!”, “Que ótimo Carnaval!”, “Marchinha é tudo de bom, né?”,
assim se despedindo, retornando para a parada de ônibus, para o supermercado, para a farmácia…
Ah, a alegria, o encanto, bem, acompanhou cada um daqueles foliões e nunca mais os abandonou.
Disso ela tinha certeza.
Porto Alegre, abril de 2006
A AUTORA

Notas:
[1] O Fora da Área de Cobertura foi o primeiro bloco de Carnaval a resgatar a folia de rua em Porto Alegre. No ano seguinte, viria o bloco Galo de Porto.
[2] O Bar do Aldo situava-se nas proximidades do Areal da Baronesa do Gravataí, um dos nascedouros do Carnaval em Porto Alegre.
[3] Cidade Baixa – bairro de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
[4] Zaffari – supermercado localizado no bairro.
[5] Imagem de destaque: design Histori-se. Imagens utilizadas na colagem disponíveis no banco de imagens do Canva (sem identificação de autoria).
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