
SÍMBOLOS DA SEGREGAÇÃO
Na edição anterior, introduzimos a obra de Tom Zé, Estudando o Pagode na Opereta SegregaMulher e Amor, cujo tema é a segregação da Mulher ao longo dos séculos, com o texto As dores das Marias
A CAPA DO CD
Para a análise desse álbum é relevante analisar primeiramente a capa do CD que configura o libreto.
O músico escolheu a imagem de uma mulher idealizada, como uma deusa grega.
Essa mulher está nua, de costas para o expectador, em um movimento que sugere vergonha ou culpa.
A imagem violenta do arame farpado sobreposta à figura suave da mulher surge como metáfora de um ideal feminino erotizado, porém segregado.
NOMES
A importância dos significantes (NOMES) para desvendar as personagens
A palavra drama em grego quer dizer “ação”.
Então, para a melhor caracterização das personagens, é necessário considerar a ação dramática que o autor recupera através de personagens evocadas da nossa memória cultural.
Para isso, é preciso encontrar episódios significativos, incidentes que as personagens provocam e como o autor se exprime através delas, atribuindo-lhes a sua própria consciência crítica.
O primeiro elemento significativo é a escolha dos nomes das personagens, como um indício revelador da relação entre significante (nome) e significado (conteúdo psicológico).
Por esse motivo, a análise das personagens será norteada pela busca dos significados culturais simbolizados pelos nomes das personagens.
O álbum de Tom Zé é composto por 16 canções, divididas em Três Atos, foram escolhidas 7 canções para a análise, centrais ao tema da opereta.
A começar neste folhetim, pela canção Ave Dor Maria do Primeiro Ato.
As personagens analisadas serão as da cena do Julgamento da Mulher.

Mônica-Sol-Musa
AS REZADEIRAS
Na Cena I, a canção “Mulher é o mal” é alusiva à narrativa bíblica de Eva, como protagonista da origem do próprio sofrimento da Mulher e do mal na humanidade:
E à mulher disse:
Multiplicarei grandemente a tua dor e a dor da tua concepção, com dor darás à luz a filhos;
e teu desejo será para teu marido, e ele te dominará.(Gênesis 3:16).
Diante do júri, por ordem de entrada, apresenta-se o coro das rezadeiras, que reza um trecho da Ave Maria de forma mecânica e repetitiva.
(Para melhor compreensão, recomenda-se ouvir as músicas da opereta para perceber a crítica ironia do autor).

O coro suplica à Virgem Maria, através da oração Ave Maria, para que interceda por todos, conforme se percebe no uso do pronome “NÓS” na oração, (“rogai por nós pecadores”), pois, conforme o coro de acusação, sobre a Mulher recai a culpa atávica dos pecados de toda a humanidade:
Mulher é o Mal que Lúcifer bota fé
Quando achou, primeiro ovo do cão
Ela chocou!
A DEFENSORA REZADEIRA
A próxima personagem a entrar é a defensora Mônica-Sol-Musa, que representa o gênero feminino, ocupando o lugar da acusada, da ré, conforme se vê na canção Ave Dor Maria por Mônica Sol-Musa:
Ave Maria!
Aqui por nós, Maria,
Vem levantar a voz.
Tem misericórdia da mulher,
nas aflições,
Que o homem cria contra nós,
A primeira personagem evocada aqui é a Virgem Maria, a mãe de Jesus.
A personagem Mônica Sol-Musa é também uma rezadeira, essa ação é o indício para desvendarmos o seu arquétipo.
A persistência em rezar como remissão de pecados denota o comportamento persistente e repetitivo da Mulher quanto ao seu pedido por misericórdia e defesa em relação às aflições e às falsas acusações que o homem cria contra ela ao longo dos séculos.

Ainda no contexto da cultura católica, o significante “Mônica” nos remete à Santa Mônica, a padroeira das mães cristãs, que entra para a história através da obra Confissões, do filho Santo Agostinho.
MÔNICA
Mônica sofreu muitas aflições pelos abusos e violências do marido infiel e com as desventuras do filho Agostinho, mas conseguiu converter o filho e o marido à fé cristã após 30 anos de incessantes orações e súplicas!
Nesse sentido, consolidaram-se as principais virtudes do feminino no ideal da mulher cristã, a resignação através da única atitude persistente possível: a oração.
Santa Mônica figura no ideário mítico religioso como a mulher que converte os homens, em oposição à Eva que perverteu o homem Adão…
Mônica foi uma cristã que viveu e morreu (331-387 d.C.) de acordo com os preceitos cristãos de submissão a Deus e aos homens.
Assim, a principal virtude da mulher na cultura patriarcal cristã é ser “a mãe ideal” e “esposa ideal”, tornando-se um paradigma social para a constituição do ser feminino e para a relação entre os gêneros.
Podemos perceber que o significado de Mônica nos remete às características de submissão e de inferioridade em relação ao gênero masculino na cultura grega cristã, a símbolos de religiosidade e pureza, glorificados pela imagem da mulher constituinte da mãe que a todos consola e nutre.
Nesse sentido, a Virgem Maria é a expressão máxima da perfeição do feminino: a mãe que concebe virgem…
MÔNICA SALMASO
De acordo com o jornalista e crítico musical, Carlos Calado, Mônica pode fazer referência também a uma Musa da MPB, Mônica Salmaso, que embora não tenha participado da gravação do CD,
é homenageada por Tom Zé na sua opereta através da escolha do seu prenome para uma das suas Musas.

O SOL
O sol mítico como significante do masculino e do feminino
O segundo nome da personagem, “Sol”, revela a sua natureza mitológica.
De acordo com o dicionário de mitologia grega e romana, o Sol representava a luz do dia e o calor sem os quais nenhuma terra poderia ser fertilizada.
Ainda de acordo com a mitologia grega, o deus grego Apolo passou a personificar o Sol mítico, signo da onipotência.
Os raios de sol representavam as flechas do deus e tinham a virtude de penetrar no seio da terra e fecundá-la.
A escolha de um significante masculino para compor a personagem feminina pode revelar o discurso do autor em acreditar na necessidade da comunhão do ser feminino com o masculino.
O deus Apolo era também o deus das artes, muitas vezes representado segurando uma lira, sentado no meio das Musas.
AS MUSAS DE TOM ZÉ
As Musas aparecem na mitologia grega como deusas jovens e virgens e benevolentes que consolavam aqueles que sofriam.
Sobre a terra, elas atuavam como deusas do ritmo, coordenavam as artes, inspiravam os poetas.
Desse modo, a origem e os significados dos significantes Mônica, Sol e Musa conferem uma ressonância mítico religiosa à rubrica da personagem “Mônica-Sol-Musa” cuja natureza mítica é “consolar os aflitos” tal qual a Virgem Maria e a Santa Mônica, por isso, a defensora-rezadeira convida Maria num canto personalista a interceder pelas mulheres e por si.
As Musas eram originárias da Trácia, que os gregos consideravam o país da luz.
Sem elas, os homens não teriam a inspiração divina para as artes, cujo sentido é a também o alívio ou consolo para a humanidade aflita.
Elas eram filhas de Mnemósine, deusa da memória, e seu significante, Musa, foi utilizado por Tom Zé para denunciar a segregação da Mulher
e por nos trazer à memória a nossa história repleta de segregação feminina.

Já a entrada do coro das mulheres expõe acusações que a Mulher tem sofrido quanto a sua honra e reputação.
O coro feminino se une para acusar o Homem por macular a imagem da Mulher, como uma criança a borrar com giz:
De giz
Me cobris
De tanta lama e ferida.
Arguis
O nada contra o nariz, ó suicida,
O autor apresenta seu ponto de vista no uso da expressão “Ó suicida”, pois lamenta e tem dó do homem que maltrata a Mulher, gesto suicida na medida em que
a violência contra o gênero feminino é também uma violência contra o próprio gênero masculino.
Afinal, não seriam “uma só carne”?
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ESTÚPIDO RAPAZ
No próximo número, na Cena II, por meio da canção Estúpido Rapaz conheceremos mais personagens arquetípicas do Julgamento da Mulher: a testemunha sinhá Zélia Bamba e a advogada Rebeca do Mato. E mais personagens de outras cenas e canções.
Não deixe de ler a próxima edição, pois, para compreender a opereta e o tema da segregação, é necessário estabelecer as devidas relações entre os significantes e significados das personagens que
expõem a carga de uma segregação histórica e o sofrimento de todas nós, Marias estigmatizadas em todas as esferas sociais e culturais.
A AUTORA

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Leia o próximo capítulo.
Clique no link a seguir: <Rebeca do Mato >.
Referências:
- Canção – Ave Dor de Maria – vide em < ave-dor-de-Maria- cifra Club >.
- Tom Zé – site oficial < https://tomze.com.br/ >.
- BRUNEL, Pierre. Dicionário dos mitos literários. José Olympio Editora,1997.
- JULIEN, Nadia. Dicionário Rideel de Mitologia. Ed. São Paulo: Ridel,2005.
- PAVIS, Patríce. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva,1999.
- SCHMIDT, Joel. Dicionário de mitologia grega e romana. Lisboa: Edições 70, 1985.
- Santa Mônica – Benozzo Gozzoli – c. 1465 (imagem de domínio público).
- Mônica Salmaso – ano 1998 – Foto de Caludio Feijó, in: < https://monicasalmaso.com/ >.
- Mnemósine – Deusa da memória – Mosaico de parede com a representação de Mnemósine – Museu Arqueológico Nacional de Tarragona.
- Imagem de Histori-se. Os designs e artes de Histori-se são de autoria de <https:/author/patricia/ >.

